OS DEUSES SANGRENTOS (por Jean d’Esme)
Foi um dos primeiros livros que li na ecléctica colecção da Livraria Clássica Editora Os Melhores Romances de Aventuras (livro que ainda possuo na minha biblioteca), e ficou-me para sempre na memória, por causa do seu enredo estranho e exótico, do seu dramatismo singular, do cenário misto de aventura e tragédia em que mergulhei irresistivelmente, ao ponto de não poder largar a leitura enquanto não cheguei à última página. Mais do que um romance de aventuras é um livro épico e fascinante, em que perpassa a evocação de um país longínquo e de raças cuja origem se perde na bruma dos tempos; e também de uma época em que o colonialismo era o símbolo do poderio europeu, do homem branco, deixando um rasto de conquistas e de civilização, coroadas por glórias efémeras, com os seus heróis, os seus mártires e as suas vítimas.
Jean d’Esme — nome com que ficou conhecido Jean Marie Henri d’Esménard — foi um dos maiores mestres nesse género literário, reflexo da história colonial, nomeadamente a da epopeia francesa na Indochina, à qual dedicou várias obras romanescas que resistiram ao veredicto e à usura do tempo, como Les Dieux Rouges (1924), apesar das grandes transformações ocorridas durante o século XX em todo o Extremo Oriente.
Nascido também nessas paragens asiáticas (Xangai, 1894), foi posto muito cedo em contacto com outros povos de tradições milenares e costumes primitivos (aos olhos dos europeus), pois seu pai viveu e trabalhou na Indochina como funcionário das Alfândegas. Os laços com a França não tinham, porém, sido cortados e foi em Paris que Jean fez os primeiros estudos, ingressando depois na Escola Colonial, em vésperas da Primeira Grande Guerra.
Viajante incansável, cineasta e jornalista, ao serviço de grandes periódicos como Je Sais Tout, L’Intransigeant e Le Matin, membro da Academia das Ciências Ultramarinas, presidente da So- ciedade de Escritores Coloniais, Jean d’Esme foi uma das figuras literárias mais notáveis do seu tempo, deixando obra extensa e variada, em que às biografias de grandes vultos militares (De Gaulle, Leclerc, Foch, De Lattre) se juntam as novelas históricas — como Les Chercheurs de Mondes, dedicada à saga dos navegadores portugueses dos séculos XV e XVI, pois foi também um grande admirador do nosso país e da nossa História —, os livros para a juventude e, sobretudo, as narrativas coloniais desenroladas em paragens exóticas, com destaque para a África Sahariana (Les Chevaliers sans Éperons), onde viveu várias experiências aventurosas, e para a Indochina, que se tornou o seu cenário mítico, o seu país asiático de eleição — paradigma de paixões proibidas, de mistérios e segredos indecifráveis, e expoente máximo da França como potência colonial.
Tal como Les Dieux Rouges (com o carismático título de Os Deuses Sangrentos, na tradução portuguesa), outros romances indochineses, inspirados nas recordações da sua juventude, como Thi Ba, Fille d’Annam, são ainda hoje considerados autênticas «pérolas» da literatura colonial francesa. Algumas obras de índole mais juvenil, como Les Maitres de la Brousse, foram também apresentadas, com grande sucesso, na célebre colecção Marabout Junior, bem conhecida dos leitores portugueses (Marabu Júnior, editora Ulisseia).
Os Deuses Sangrentos é a única obra de Jean d’Esme que figura na colecção Os Melhores Romances de Aventuras, cujos volumes, como já disse, rechearam de muitas emoções e fantasias o meu imaginário juvenil, deixando nele um lastro de fascínio por este género literário. Lembro-me de que este livro me foi oferecido por altura do meu aniversário (devia ter uns 12 ou 13 anos), e a sua leitura absorveu-me e entusiasmou-me de tal forma, apesar do tema ser mais indicado para adultos, que logo me tornei um leitor assíduo da colecção da Clássica Editora — na qual, de facto, fazendo jus ao seu nome, se publicavam os melhores romances de aventuras da época, com boas traduções integrais e sugestivas capas baseadas, na sua maioria, em motivos fotográficos.
O título foi inspirado no de uma colecção francesa com os mesmos moldes (mas cujas capas eram diferentes), de onde saíram muitos volumes que o público português recebeu com agrado, como prova a longevidade desta colecção e o número de obras traduzidas, tanto do francês como do inglês, às quais se juntaram alguns originais portugueses — nomeadamente do prolífico Pedro de Sagunto (pseudónimo usado por Pedro A. de Carvalho).
Os Deuses Sangrentos (5º volume da colecção), um drama estranho, sombrio e de mistério, cujo enredo começa pelo epílogo, narra a trágica odisseia de Pierre de Lursac, um jovem administrador civil recentemente chegado de França e colocado no famoso Posto 32, «o pior local de todo o Alto Laos», a fim de organizar na zona uma vasta operação de policiamento contra as aguerridas tribos moïs. Ao embre- nhar-se profundamente nessa região selvática, De Lursac caminhava ao encontro de uma fan- tástica aventura, entre um povo ignoto e fabu- loso de homens pré-históricos, cujos sangrentos costumes acabariam por ser-lhe fatais!
Espero que esta breve descrição vos tenha despertado a curiosidade por um dos mais fantásticos romances de aventuras escritos até hoje — e não julguem que estou a exagerar! —, cuja leitura obviamente recomendo a todos, entre os 17 e os 87 anos, que apreciem ambientes exóticos e emoções fortes. E se não tiverem a boa fortuna de descobri-lo nalgum dos poucos alfarrabistas que ainda conseguem resistir à crise, sugiro que procurem na internet as versões originais que aqui apresentámos, pois, embora antigas, conseguem ser mais acessíveis do que as edições portuguesas de 1934 e 1944. Boa leitura!